quarta-feira, 28 de maio de 2014

Uma canção desnaturada



Por que creceste, curuminha
Assim depressa, e estabanada
Saíste maquiada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Para viver a tempo de poder
Te ver as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos botequins
Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído

(Chico Buarque de Holanda)


     A música nos permite inúmeras possibilidades de interpretação, é parte do musical ''Ópera do malandro'' Onde é interpretado e cantado o drama de Duran e Vitória, pais de Teresinha, que se desesperam quando a filha abandona a casa para casar-se com o malandro Max. Pra mim é uma das canções mais lindas e sinceras do Chico, ela deixa muito clara a angústia dos pais ao perceberem que os seus filhos cresceram. É obvio que em um exagero de emoções, demonstra a vontade que eles têm de que os seus filhos nunca cresçam e os seus sentimentos quando estes alcançam não só a adolescência, mas conquistam liberdade e autonomia diante dos pais.


    Essa letra retrata a sensação de revolta e abandono que a mãe sente ao ser deixada pela filha, esta deseja voltar no tempo e desfazer todo o percurso que fez e desencadeou na formação da filha, a ponto de desejar que ela nem tivesse nascido; a adolescente não teria boneca, colo ou leite se a mãe soubesse no que ela se tornaria. Sabemos que a adolescência é uma fase bastante difícil e não só para quem vive, mas também para quem acompanha o processo, pois assim como os filhos os pais também nutrem a fantasia de abandono por parte dos filhos. Esse período é marcado por mudanças físicas e o compositor deixa claro o sentimento que a  mãe tem de querer voltar no tempo quando percebe o que a filha tornou-se na seguinte frase: ''Se fosse permitido eu revertia o tempo, para viver a tempo de poder te ver as pernas bambas, curuminha, te emporcalhando inteira'' é difícil para quem criou ver o filho torna-se objeto de desejo dos outros; ver que aquele tem opinião própria e o que o lugar dos pais em sua vida passou a ser o lugar de referencia e não mais aquele de quem dita as ordens. Os conflitos entre pais e filhos se dão basicamente por isso, a separação que os adolescentes estabelecem  que remete aos pais a própria castração, eles se dão conta de que não são donos dos filhos e estão sozinhos novamente.


Por: Laisse Arruda




7 comentários:

  1. Chico é O cara! A parte que mais me toca é o final quando fiz "Te recolher pra sempre à escuridão do ventre, curuminha, de onde não deverias nunca ter saído". Essa relação pais/adolescente é tão um "turbilhão de confusões" a ponto da mãe desejar a inexistência da própria filha por não suportar esse desprendimento. Fascinante!

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  2. Essa relação com Chico foi show! O mais doloroso é essa sensação de querer voltar no tempo e reviver aquela "tempo de poder te ver as pernas bambas, curuminha, te emporcalhando inteira".

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  3. fica provado que a arte não tem sexo. Chico é Chico.

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  4. A alma feminina e tão abandonada que conheço e a de um homem
    Chico Buarque

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  5. Chico transita muito bem pelo universo feminino.

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  6. Chico transita muito bem pelo universo feminino.

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  7. Chico transita bem em qualquer universo! Incrível!

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